NOTA SOBRE O ROMANTISMO NA EUROPA E EM PORTUGAL
A origem genealógica do romantismo europeu e o correlativo enxerto da nossa arrancada romântica encontram-se sumariamente tracejados no texto de Abel Botelho Blasfémias de um crente , dirigido sob a forma de carta a Antero de Quental. Aí se declara o seguinte :
" (...) o povo que proclamara no século XVI a liberdade de consciência, com a Reforma, foi o que no século XVIII atacou o dogmatismo da Arte, com o Romantismo.
Rompeu da Alemanha a iniciativa.
Lessing cria na Emília Gallotti a comédia burguesa ; a lenda teutónica escorraça o mito helénico, Schiller revoluciona o teatro, Goethe revolucionou o sentimento, Hegel revoluciona o pensamento. A deflagração generaliza-se. A literatura de cada povo vai buscar a inspiração ao génio nacional.
Manzoni proclama na Itália o novo verbo ; na Inglaterra, Walter Scott e Byron continuam a tradição de Marlowe e Shakespeare. Madame de Staël traz deslumbrada para a França o novo ideal germânico, e fecunda o espírito de Victor Hugo, Alfredo de Vigny, Michelet. DEpois, a descoberta da continuidade étnica das formas literárias, através das civilizações, deu um critério seguro à filosofia da Arte.
O Romantismo triunfava. Portugal foi o último a estudar as suas tradições.
Os promotores da nossa evolução romântica foram dois emigrados liberais: Garrett, fugido em 1823 a D. João VI, que perjurara a Constituição de 1822 ; e Herculano, escapado em 1831 a D. Miguel, que renegara a Carta de 1826. Mas a geração a que eles vieram trazer a boa nova era baça, espessa, fria, redondamente imbecil. Aquela impulsão generosa perdeu-se na crassidão fradesca das academias, como uma pedrada nas rêpas de um camelo. O lirismo fez-se lamecha ; a incapacidade de observação não deu mais que o romance e o drama histórico ; parou nas exterioridades a compreensão da Idade Média. Foi então que Castilho se arvorou em mestre, montando na Ideia feita capacho o seu trono frívolo e aferindo os homens pelo estalão retórico."
Foram, com efeito, Herculano e Garrett os introdutores do ideário romântico e da sua temática entre nós, embora com um atraso manifesto, mas historicamente compreensível.
É espinhoso e falível proceder à caracterização das notas específicas do romantismo, até porque estas variam de país para país. Contudo, não nos parece ousado declarar que o romantismo assume, no plano da arte, a mesma vocação individualista que o liberalismo entremostra nos domínios da economia e da sociedade.
A quebra deliberada das regras canónicas e das directrizes paradigmáticas estabelecidas diuturnamente corresponde com nímia clareza , em nosso entender, à nova vocação criativa. Esta deseja expressar, com uma margem de tolerância outrora desconhecida, todos os cambiantes contidos na subjectividade pessoal, rebelando-se, pois, contra a fixidez temática e programática do arcadismo clássico. Desta linha de fronteira decorre a maior relevância da razão no discurso clássico e a maior enfatização do sentimento na expressividade romântica. E se a analítica racional, pelo seu pendor demonstrativo e justificativo, impõe a sua implacável normatividade ao artista universal, já a síncrese emotiva, ou passional, ou sentimental, modera consideravelmente, através do seu solilóquio intimista, o império deste universalismo.
O criador romântico sente que pode opor a espontânea emergência do seu Eu à meditada regulação do Mundo exterior, visto como uma irredutível alteridade, ou seja, como o Outro. Esta particular enfatização do que é próprio, do que modela de modo imanente cada modo de ser e de estar, permite compreender a linha de força que se nos dá no nacionalismo romântico. A arte romântica teria de ser etnológica, folclorista, populista, numa palavra, nacionalista, porque o artista romântico brandia a gramática das vivências subjectivas mais imediatas, contra os dogmatismos que a razão teria querido objectivar.
Não espanta, portanto, que a arte descubra as suas raízes no húmus de um país, de um povo, de uma região, de uma peculiar paisagem. O artista não se deixava deslumbrar por uma realidade distante, colocada como hipóstase, mas por referências mais palpáveis e endógenas.
Notemos ainda que a rotura de uma "cultura de paradigma" engendrava a consciência concomitante de alternativas de transgressão. Queremos com isto dizer que os agentes românticos se reconheceram facilmente como fautores de dissidência, em muitos casos como protagonistas de escândalo, quer no plano criativo, quer no próprio plano comportamental. A arte poderá passar a ser encarada, portanto, como uma instância de reavaliação de interpretações pretéritas. Uma dessas reavaliações conduziu à reabilitação da Idade Média, que o pensamento iluminista apresentara como um quietismo gótico regressivo. Surpreendemos ainda, dentro da mesma linha, o acentuado pendor pelas diversas formas de exotismo, servindo de contraponto ao severo despojamento dos cadinhos clássicos.
As concepções de religiosidade também não escapariam às novas tendências, não tanto pela impiedade dos pensadores românticos, mas sobretudo pelo imperativo de adequar a Divindade à correspondente tábua de valores afectivos. Sabe-se como, no prolongamento da revolução francesa de 1789, grassaram pela Europa um sem número de cultos naturalistas, humanitaristas e teofilantrópicos, oriundos de mundividências procedentes do iluminismo (Rousseau, Voltaire, D'Holbach, Diderot, D'Alembert, etc). Deste impulso nasceram ou se refizeram outras modalidades de panteísmo e de deísmo, mais cultuais do que dogmático-regimentais. Os movimentos revolucionários que pulularam um pouco por toda a Europa no decurso da crise de 1848 foram invariavelmente acompanhados por vagas e multiformes expressões de religiosidade semi-laicizada.
( Escrevi isto algures. Mas não sei bem onde ... )
@Autor: A.C.H.
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