O meu relógio é bom. Talvez até deva dizer que é demasiado bom. Mas revela uma insuficiência : a das pilhas. O meu relógio dá as horas ; se eu quiser, bate os quartos de hora ; tem uma luzinha para que eu veja de noite a hora que é ; ostenta a função de despertador e, nesta, eu posso graduar o alarme, que pode ser feito ou pela concertina do Quim Barreiros ou pelo violino do Paganini ; dá-me a hora exacta de Paris, Londres, Moscovo, Praga e Uagudugu ; muda automaticamente a hora de verão para o hora de inverno e vice-versa.
Mas revela uma deficiência fundamental : trabalha a pilhas. Quando as pilhas se acabam - e acabam cada vez mais cedo - eu vou a uma loja chinesa e digo : " Quero pilhas para este relógio" ;. E o amarelo que se encontra do outro lado do balcão , certifica-se : "Pilas ? E em que numelo ? " ;
E eu sou obrigado a replicar : " Só tenho uma , e bom jeito me faria se tivesse outra sobresselente " ; O amarelo não entende, e insiste : "Uma pila ? Só uma pila não há. Só vende aqui duas pilas " .
Começo a ferver, até porque umas colegiais de pito aos saltos, quero eu dizer, bastante irrequietas, fartam-se de fazer risinhos pelos cantos da boca e dão cotoveladinhas umas às outras.
Eu vou ouvindo em surdina : "Olha, velhadas quer uma pila nova. Não acho piada nenhuma àquilo. E , morto por abandonar aquele inferno, disparo para o amarelo : "Tudo bem. Quanto é que custam as duas pilhas ? " ; . E ouço : Confolme a voltage, plecebe ?"
Não. Eu não percebo coisa nenhuma. Eu sei lá a voltagem da minha pila, digo, da minha pilha. Sei que eu e o relógio temos vindo a perder potencial com o passar do tempo.
Tento outra abordagem com o china : "Olhe, meu amigo, também usa relógio de pilhas ?" E ele machuca-me : "Não. Nunca. É muito calo !!! Dou à mão ".
Nessa altura, as colegiais já perderam toda a compostura e riem a bandeiras despregadas. Estou envergonhadíssimo. Volto á carga : " Mas qual é a voltagem normal de um relógio normal ? " E o mandarim responde : "Cada pila pala o seu lelógio. Pode tel muitas funções".
Aqui chegado, eu já estou a ser o bobo da corte da loja toda. Há um casal, depois das colegiais com a voltagem aos saltos. que está muito vermelho e parece ir rebentar de um momento para o outro.E por isso pondero , finalmente, muito digno : "Olhe, não quero pilhas nenhumas. Vou usar o relógio velho de um tetravô". E o gajo, cada vez mais amarelo, achata-me com estas palavras : "O Senhol tem lazão. Não há nada como fazel com as mãos" .
As meninas riem sem disfarçar- O casal morde os beiços. Abandonei a loja, a correr muito , e sem olhar para trás.
@A.C.H.
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