Hoje celebra-se o dia mundial da poesia. Escolhemos Manuel António Pina para o celebrar convosco.
A TRISTE HISTÓRIA DO ZERO POETA
Numa certa conta havia um zero dado à poesia que tinha um sonho secreto: fugir para o alfabeto.
Sonhava tornar-se um O nem que fosse um dia só, ou ainda menos: só o tempo de dizer: «Oh!»
(Nos livros e nas seletas o que mais o comovia eram os «Ohs!» que os poetas metiam nas poesias!)
Um «Oh!» lírico & profundo, um só «Oh!» lhe bastaria para ele dizer ao mundo o que na alma lhe ia!
E o que na alma lhe ia! Sonhos de glórias, esperanças, ânsias, melancolia, recordações de criança;
além de um grande vazio de tipo existencial e de uma caixa que o tio lhe pedira para guardar;
e ainda as chaves do carro e uma máscara de entrudo... Não tinha bolsos, coitado, guardava na alma tudo!
A alma! Como queria gritá-la num «Oh!» sincero! Mas não passava de um zero que, oh!, não se pronuncia...
Daí que andasse doente de grave doença poética e em estado permanente de ansiedade alfabética.
E se indignasse & etc. contra o destino severo que fizera dele um zero com uma alma de letra!
Tanta ambição desmedida, tanto sonho feito pó! E aquele zero dava a vida para poder dizer «Oh!»...
Manuel António Pina | "Pequeno Livro de Desmatemática" | Assírio & Alvim, 2002
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