HISTÓRIA DE UM LÁPIS DE GRAFITE
Permitam que me apresente: sou um modesto lápis de grafite e imagino que a minha vida acabará amanhã. Nasci no século XVI, mas a maior divulgação do meu préstimo verificou-se nos tempos seguintes.
A minha mãe, a Dona Grafite, apresentou-se ao meu pai, o Senhor Madeira, numa altura em que a Humanidade andava preocupada com o desafio de ver generalizado um modo fácil de escrita. O meu pai, para lhe ser agradável, abriu-se ao meio e também ele se fez adequado à função prevista. Disse então à minha mãe que a admitiria na sua própria casa, a qual não era mais do que uma ranhura que corria entre as suas duas extremidades. A minha mãe achou o lar aconchegado, confortável e seguro. O meu pai, para melhor a tratar, fez-se esquinado, em pentágono, fechou ciosamente a minha mãe em casa e, descoberto o processo de fabricação, trataram de o reproduzir. Desse esforço, nasci eu, filho deles, com toda uma vida para viver e com a maior vontade de me ver afiado, para cumprir as funções que imaginava quadrarem à minha natureza.
Tive uma existência laboriosa. Colocaram-me à venda num quiosque e o meu primeiro comprador foi um miúdo irrequieto e martirizador. Imaginem que, volta e meia volta, me roía o rabo, dando-lhe trincadelas escabrosas e inaceitáveis. Um dia, o pai do miúdo quis ver o material didáctico que ele guardava na sacola. Ficou muito escandalizado com o pobre estado da minha parte traseira e disse ao seu rebento:
– Tu não mereces este lápis. Vou-te comprar antes uma esferográfica – modernices, está visto! – e guardo este lápis de grafite para mim.
Foi assim que eu mudei de vida e a melhorei substancialmente. O pai do miúdo só me fazia trabalhar aos fins-de-semana, pois tinha o hábito de fazer as palavras cruzadas do jornal. O resto do tempo era bonançoso e fluía sem que eu me gastasse. Tenho de confessar que nesta feliz época vivi bastante bem, dentro de um frasco de vidro, onde também havia palitos dos dentes, esferográficas – modernices, sempre modernices! – duas borrachas e outras duas pinças filatélicas.
Tive sempre medo das borrachas e, por isso, guardei em relação a elas a maior distância. Fui deveras amigo de uma das esferográficas (a que escrevia a verde) e de ambas as pinças filatélicas. O tempo foi passando e eu encolhi proporcionalmente, uma vez que, para poder fazer as palavras cruzadas, o dito senhor me mandava tosquiar frequentemente a cabeça, conferindo-me o feitio de uma pequena picareta.
O meu primeiro proprietário, o tal miúdo, deixou de ser miúdo. Foi, contra a vontade do pai, para uma Faculdade de Letras, sem atender a que “aqueles cursos não davam para fazer dinheiro grosso” (palavras do pai). Conseguiu arranjar por lá uma licenciatura e toda a gente começou a chamar-lhe doutor (ou dr., conforme as versões, minudências que eu nunca percebi muito bem). Ora, este Doutor Letras, com o seu primeiro ordenado, decidiu ofereceu ao pai uma caneta de tinta permanente (as modernices sempre foram nocivas para a minha sorte ...) e disse-lhe que, como dali em diante já não necessitaria do lápis de grafite, me iria levar com ele, dentro de uma grande pasta de couro. Julguei que o meu destino era voltar às palavras cruzadas. Mas não ... O Doutor Letras corrigia, a meias comigo, os exercícios dos seus alunos, que eram imensos e o faziam dizer palavrões. Este frequente calvário ainda me tornou mais pequeno. O Letras fartava-se de se servir dos meus préstimos e fazia-me trabalhar até à exaustão. Tirava da pasta de couro uma das minhas mais cortantes inimigas, a afiadeira, e quando eu começava a escrever de modo mais rombo, consumia-me a cabeça, fazendo-a rodar dentro da afiadeira.
Por tal facto, não é de admirar que esteja reduzido a um coto insignificante e que o Doutor Letras já tenha rosnado, a meia voz, que iria comprar brevemente um outro lápis decente. Ingrato, ingrato!, como se eu alguma vez tivesse sido indecente para com ele! Amanhã é dia de correcção de uns exercícios feitos pelos alunos. O Doutor Letras chama àquilo pontos. Continua a praguejar insistentemente, sobretudo quando os coloca em pilha, no centro da sua secretária. Bufa, dá murros em cima daquela enorme amontoado de papel, a face ruboriza-se e o Doutor Letras vai ao ponto de falar sozinho, murmurando frases como estas: “quem tinha razão era o meu Pai; e eu, parvalhão, que não lhe dei ouvidos! Mas por que tétrica decisão me meti eu nisto, tendo, ainda por cima, que aturar os filhos dos outros? Mas por que é que eu não tirei um curso de Programação Computacional ou qualquer um desses outros que permitissem ganhar dinheiro grosso?”
Eram juízos destes que eu estava permanentemente a ouvir, e que apenas me divertiriam se não se desse o caso de ser eu a pagar as favas destas explosões de mau génio. O Doutor Letras, inconformado com a sua vida, atirava-me violentamente para cima da secretária, como se fosse minha a culpa dos prazos a cumprir, no fim dos períodos lectivos.
Agora, com o aproximar do termo do ano académico, o meu calvário atingirá o cúmulo. O meu dono trará para casa mais um himalaia de papel, onde eu, a seu mando, irei fazer muitos rabiscos e exarar abundantes comentários. Alguns destes contundentes comentários serão depois cuidadosamente apagados, não fossem valer ao Doutor Letras algumas ríspidas advertências, ou até uma boa sova, justificada pelas suas abusivas apreciações. Retive de memória uma ou outra destas explosões de mau génio, tais como: “Este bruto não sabe nada disto!”; “Ah, ah, ah, ah, que conclusão mais imbecil!” ; “Oh , menina, vais ter um lindo enterro !”; “ Mas por que é que este nabo não se dedica à pesca à linha?”, etc, etc.
A afiadeira comeu-me na última sessão de correcções mais uns tantos milímetros. Estou agora reduzido a uns escassos centímetros.
Nada a fazer. Já me despedi, por carta detalhada e explicativa, dos palitos dos dentes, da esferográfica verde e das pinças filatélicas. Às borrachas vou mandar um telegrama sucinto. Devo ir parar ao caixote do lixo. Mas parto com a consciência de que cumpri a minha missão. E, podem crer, aumentei muito o meu vocabulário com as palavras cruzadas.
( No meu livro "Este Levíssimo Quotidiano" ) | @A.C.H.
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