Era possível que uma dissidência qualquer nos fizesse bulhar e andássemos esquerdos durante uns dias, mas, na cama, o armistício era garantido. Bastava tocar-me ao de leve no pé ou no braço, olhar para mim com olhos de carneiro mal morto ou fazer-me uma festa na cabeça, suave, para, minutos depois, nos engalfinharmos num bailado grotesco.
Não era uma coisa desligada da nossa afectividade, pelo contrário: era algo forte e metafísico que prevalecia como um culto às zangas e divergências, e nos informava, todas as noites, que o amor vencera mais uma vez.
Foi assim sempre, desde que nos casámos, e não recordo uma só época em que nos tivéssemos abstido mais do que cinco dias.
No entanto, penso que nem ele nem eu, apesar das acções de graças, estimávamos suficientemente o privilégio que era, já na altura, gozarmos de um parceiro único que nos enchia as medidas e tornava inconcebível, a ambos, a ideia de fantasiar com mais alguém.
Não tinha história: era como uma boa refeição que, sem pesar no estômago, nos matava a fome, pulsão que só voltaríamos a sentir na noite seguinte ao primeiro contacto com a pele do outro.
Uma rotina, talvez, mas que selava o dia da melhor maneira e nos tonificava para o seguinte, sem crises nem equívocos e tão infalível que não precisava de alimento espiritual, estímulos ou fantasias.
Isto, não sendo ele um grande amante.
Nunca lhe interessaram os aceleradores de prazer, ignorava olimpicamente as contradições femininas, não albergava perversão alguma naquele espírito cartesiano com vocação para o bridge, jamais se aventurava a algo que pudesse beliscar a ortodoxia cristã – não por obediência, mas pela mais irremediável falta de imaginação - e nunca, por nunca, improvisava: era à noite, era na cama, era ele por cima, era de luz apagada, eram quinze minutos, se tanto, que lhe produziam meia dúzia de relinchos de gozo e uma convulsão, sacudida e sonora, no fim - sinal de que tudo terminara e de que adormeceria passados instantes.
- Vá, agarra-te agora a mim, vamos lá dormir!
Tantas vezes que fiquei a fitar a escuridão, com ele já adormecido, pensando que não seria justo exigir-lhe a mesma aplicação dos grandes galãs do cinema, já que eu mesma nada tinha que ver com as beldades de batom e lingerie escarlate, cujos pés, acetinados pela maquilhagem, eles beijavam de olhos fechados.
E a verdade é que eu colhia um prazer imenso dessa tracção animal tão completa.
Para uma mulher como eu, carnal, nenhuma sofisticação romântica ou depravada tinha força para superar meia hora de pragmatismo rural.
Adormecia cansada e pacificada, logo a seguir a ele, e esse estado de graça, de leveza, de saciedade, em que o meu marido me mantinha, foi, talvez, a receita nunca formulada da nossa longevidade conjugal.
Quando essa regularidade falhou e a privação me foi imposta, reagi mal, e foi então que descobri que certas mulheres – a maioria? – consegue esquecer tudo o que lhe foi dado durante uma vida inteira – amor, dinheiro, cuidados, protecção – no dia em que se vêem privadas daquilo que, como o sexo, consideram ser um uma coisa já sua, um bem próprio, um direito de propriedade por usucapião.
- Queres falar?
- Já não sou novo, o que é que queres? Há um dia em que isto começa a falhar! - E não vais ao médico porquê?
- Sei lá. O melhor é aceitar e pronto.
- Aceitar?
Quer dizer: por um lado, insinuava estar a atravessar uma crise de impotência; por outro, com cinquenta anos, um corpo enxuto, e, por junto, uma pedra nos rins, encarava-a como um pormenor natural e previsível, acatando, sem sinais de revolta ou desespero, um golpe daqueles.
Sei que, de um dia para o outro, o cenário que dantes nos acolhia como um jardim das delícias tornou-se, para mim, num palco de amarguras e ressentimentos, de prantos e de fúrias, de passeios sonâmbulos e de pesadelos encenados, enquanto o responsável directo ou indirecto de toda aquela histeria dormia a sono solto, alheio às minhas chamadas de atenção.
Não me quero lembrar.
Ainda passei por um período de oferecimento indigno, estreando camisas de noite de bordel e insinuando-me às horas mais pagãs, e cheguei a alegrar-me com as desculpas que ele esfarrapava para as poder liquidar no dia seguinte com retaliações e ofensas.
Uma vez, ultrajada por tanto desinteresse, perdi a cabeça e desci à banalidade de lhe lembrar que tinha necessidades, que não era santa, e que, se a situação se prolongasse, ver-me-ia obrigada a abjurar a fidelidade prometida no altar.
Ora isto, por parte de uma mãe de filhos irrepreensível, que até então nunca falhara na compostura, só serviu para o repugnar e acentuar o fosso entre nós.
É fácil, agora, dar um tom ligeiro, ou até burlesco, a esta crise.
Aliás, todas as crises sexuais nos parecem hilariantes, vistas de fora; mas, internamente, tomadas por um egoísmo monstruoso por parte de quem priva, e vingadas com um azedume castrador por quem é privado, podem conduzir-nos a abismos infernais.
Foi numa manhã igual a todas as outras que acordei com a convicção absoluta de que ele me enganava.
(RF, Tá tudo bem)
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