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Desmistificando a Maçonaria: Uma Análise Crítica ao Projeto de Lei sobre "Associações Secretas"

“Associações secretas”


Estreou-se a Assembleia Nacional, do ponto de vista legislativo, com a apresentação, por um deputado, de um projeto de lei sobre "associações secretas". De tal ordem é o projeto, tanto em natureza como em conteúdo, que não há que felicitar o atual Parlamento por lhe ter sido dada essa estreia. Antes que dizer-lhe Absit omen!, ou seja, em português, Longe vá o agoiro!


Apresentou o projeto o Sr. José Cabral, que, se não é dominicano, deveria sê-lo, de tal modo o seu trabalho se integra, em natureza, como em conteúdo, nas melhores tradições dos Inquisidores. O projeto, que todos terão lido nos jornais, estabelece várias e fortes sanções (com exceção da pena de morte) para todos quantos pertençam ao que o seu autor chama "associações secretas, sejam quais forem os seus fins e organização".


Dada a latitude desta definição, e considerando que por "associação" se entende um agrupamento de homens, ligados por um fim comum, e que por "secreto" se entende o que, pelo menos parcialmente, se não faz à vista do público, ou, feito, se não torna inteiramente público, posso, desde já, denunciar ao Sr. José Cabral uma associação secreta — o Conselho de ministros. De resto, tudo quanto de sério ou de importante se faz em reunião neste mundo, faz-se secretamente. Se não reúnem em público os Conselhos de ministros, também não o fazem as direções dos partidos políticos, as tenebrosas figuras que orientam os clubes desportivos ou os sinistros comunistas que formam os conselhos de administração das companhias comerciais e industriais.


Embora uma interpretação desta ordem legitimamente se extraia do frasear pouco nacionalista do sr. José Cabral, creio, tanto porque assim deve ser, como pelos encómios com que o projeto foi afagado pela imprensa pseudocristã, que as "associações secretas", que ele verdadeiramente visa, são aquelas que envolvem o que se chama "iniciação", e portanto o segredo especial a esta inerente.


Ora no nosso país, caída há muito em dormência a Ordem Templária de Portugal, desaparecida a Carbonária — formada para fins transitórios, que se realizaram —, não existem, suponho, à parte uma outra possível loja martinista ou semelhante, mais do que duas "associações secretas" dessa espécie. Uma é a Maçonaria, a outra essa curiosa organização que, em um dos seus ramos, usa o nome profano de Companhia de Jesus, exatamente como, na Maçonaria, a Ordem de Heredom e Kilwinning usa o nome profano de Real Ordem da Escócia.


Dos chamados jesuítas não tratarei, e por três motivos dos quais calarei o primeiro. Os outros dois são: que não creio, por mais razões do que uma, que eles corram risco de, aprovado que fosse o projeto, lhes serem aplicadas as suas sanções; e que não creio por uma razão só, que o Sr. José Cabral tenha pretendido que tal aplicação se fizesse. Presumo pois que o projeto de lei do urgente deputado se dirija, total ou principalmente, contra a Ordem Maçónica. Como tal o examinarei.


Não faço, creio, ofensa ao Sr. José Cabral em supor que, como a maioria dos antimaçons, o autor deste projeto é totalmente desconhecedor do assunto Maçonaria. O que sabe dele é até, porventura, pior que nada, pois, naturalmente, terá nutrido o seu antimaçonismo da leitura da Imprensa chamada católica, onde, até nas coisas mais elementares na matéria, erros se acumulam sobre erros, e aos erros se junta, com a má vontade, a mentira e a calúnia, senhoras suas filhas. Não creio que o Sr. José Cabral conviva habitualmente com os livros de Findel, Kloss ou Gould, ou que passe as suas horas de ócio na leitura atenta da Ars Quatuor Coronatorum ou das publicações da Grande Loja de Iowa.


Duvido, até, que o Sr. José Cabral tenha grande conhecimento da literatura antimaçónica — Barruel ou Robinson, ou Eckert — tão admirável, aliás, do ponto de vista humorístico. Nem terá tido porventura noção, sequer de ouvido, do artigo célebre do Padre Hermann Grüber na Catholic Encyclopaedia , artigo citado com elogio em livros maçónicos, e em que o douto jesuíta por pouco não defende a Maçonaria.


Ora se o sr. José Cabral está nesse estado de trevas com respeito à natureza, fins e organização da Ordem Maçónica, suponho que em igual condição estejam muitos dos outros membros da Assembleia Nacional, com a diferença de que se não propuseram legislar sobre matéria que ignoram. Sendo assim, nem o deputado apresentante, nem os seus colegas de assembleia, estarão, talvez, em estado de medir claramente as consequências nacionais, internas e sobretudo externas, que adviriam da aprovação do projeto. Como conheço o assunto suficientemente para saber de antemão, e com certeza, quais seriam essas consequências, vou fazer patrioticamente presente da minha ciência ao Sr. José Cabral e à Assembleia Legislativa de que é ornamento.


Começo por uma referência pessoal, que cuido, por necessária, não dever evitar. Não sou maçom, nem pertenço a qualquer outra Ordem semelhante ou diferente. Não sou porém antimaçom, pois o que sei do assunto me leva a ter uma ideia absolutamente favorável da Ordem Maçónica. A estas duas circunstâncias, que em certo modo me habilitam a poder ser imparcial na matéria, acresce a de que, por virtude de certos estudos meus, cuja natureza confina com a parte oculta da Maçonaria — parte que nada tem de político ou social —, fui necessariamente levado a estudar também esse assunto, assunto muito belo, mas muito difícil, sobretudo para quem o estuda de fora. Tendo eu, porém, certa preparação, cuja natureza me não proponho indicar, pude ir, embora lentamente, compreendendo o que lia e sabendo meditar o que compreendia. Posso hoje dizer, sem que use de excesso de vaidade, que pouca gente haverá, fora da Maçonaria, aqui ou em qualquer outra parte, que tanto tenha conseguido entranhar-se na alma daquela vida, e portanto, e derivadamente, nos seus aspetos por assim dizer externos.


Se falo de mim, e deste modo, é para que o Sr. José Cabral e os seus colegas legisladores saibam perfeitamente quem lhes está falando, e que [*]o que vão ler, se quiserem, é escrito por quem sabe o que está escrevendo. Não que o que vou dizer exija profundos conhecimentos maçónicos: é matéria puramente de superfície, da vida externa da Ordem. Exige porém conhecimentos, e não ignorâncias, fantasias ou mentiras.


*


Começo a valer. Creio não errar ao presumir que o sr. José Cabral supõe que a Maçonaria é uma associação secreta. Não é. A maçonaria é uma Ordem secreta, ou, com plena propriedade, uma Ordem iniciática. O sr. José Cabral não sabe, provavelmente, em que consiste a diferença. Pois o mal é esse — não sabe. Nesse ponto, se não sabe, terá que continuar a não saber. De mim, pelo menos, não receberá a luz. Forneço-lhe, em todo o caso, uma espécie de meia-luz, qualquer coisa como a «treva visível» de certo grande ritual. Vou insinuar-lhe o que é essa diferença por o que em linguagem maçónica se chama «termos de substituição».


A Ordem Maçónica é secreta por uma razão indireta e derivada — a mesma razão por que eram secretos os Mistérios antigos, incluindo os dos cristãos, que se reuniam em segredo, para louvar a Deus, em o que hoje se chamariam Lojas ou Capítulos, e que, para se distinguir dos profanos, tinham fórmulas de reconhecimento — toques, ou palavras de passe, ou o que quer que fosse. Por esse motivo os romanos lhes chamavam ateus, inimigos da sociedade e inimigos do Império — precisamente os mesmos termos com que hoje os maçons são brindados pelos sequazes da Igreja Romana, filha, talvez ilegítima, daquela maçonaria remota.


Feito assim o meu pequeno presente de meia-luz, entro diretamente no que verdadeiramente interessa — as consequências que adviriam, para o país, da aprovação do projeto de lei do sr. José Cabral. Tratarei primeiro das consequências internas.


A primeira consequência seria esta — coisa nenhuma. Se o sr. José Cabral cuida que ele, ou a Assembleia Nacional, ou o Governo, o quem quer que seja, pode extinguir o Grande Oriente Lusitano, fique desde já desenganado. As Ordens Iniciáticas estão defendidas, ab origine symboli, por condições e forças muito especiais, que as tornam indestrutíveis de fora. Não me proponho explicar o que sejam essas forças e condições: basta que indique a sua existência.


De resto, têm os srs. Deputados a prova prática em o que tem sucedido noutros países, onde se tem pretendido suprimir as Obediencias maçónicas. Ponho de parte o caso da Rússia, porque não sei concretamente o que ali se passou: sei apenas que os Sovietes, como todo o comunismo são violentamente antimaçónicos e que perseguiram a Maçonaria; e também sei que pouco teriam que perseguir, pois na Rússia quase não havia Maçonaria. Considerarei os casos a Italia, da Espanha e da Alemanha.


Mussolini procedeu contra a Maçonaria, isto é, contra o Grande Oriente de Itália, mais ou menos nos termos pagãos do projeto do sr. José Cabral. Não sei se perseguiu muita gente, nem me importa saber. O que sei, de ciência certa, é que o Grande Oriente de Itália é um daqueles mortos que continuam de perfeita saúde. Mantém-se, concentra-se, tem-se depurado, e lá está à espera; se tem em que esperar é outro assunto. O camartelo do Duce pode destruir o edifício do comunismo italiano; não tem força para abater colunas simbólicas, vasadas num metal que procede da Alquimia.


Primo de Rivera procedeu mais brandamente, conforme a sua índole fidalga, contra a Maçonaria espanhola. Também sei ao certo qual foi o resultado — o grande desenvolvimento, numérico como político, da Maçonaria em Espanha. Não sei se alguns fenómenos secundários, como, por exemplo, a queda da Monarquia, teriam qualquer relação com esse facto.


Hitler, depois de ser ter apoiado nas três Grandes Lojas cristãs da Prussia, procedeu segundo o seu admirável costume ariano de morder a mão que lhe dera de comer. Deixou em paz as outras Grandes Lojas — as que o não tinha apoiado nem eram cristãs — e, por intermédio de um tal Goering, intimou aquelas três a dissolverem-se. Elas disseram que sim — aos Goerings diz-se sempre que sim — e continuaram a existir. Por coincidência, foi depois de se tomar essa medida que começaram a surgir cisões e outras dificuldades a dentro do partido nazi. A história, como o sr. José Cabral deve saber, tem muitas destas coincidências.


Como tenho estado a apresentar razões e factos até certo ponto desanimadores para o sr. José Cabral, vou desde já animá-lo com a indicação de um resultado certo, positivo, que adviria da aprovação do seu projeto. Resultaria dele — alegre-se o dominicano! — um grande número de perseguições a oficiais do Exército e da Armada e a funcionários públicos. Perderiam os seus lugares os que não quisessem ter a indignidade de repudiar a sua Ordem.


Resultaria, por tanto, a miséria para as suas famílias, onde é possível — e isto é que é grave — que se encontrassem pessoas devotas de Santa Teresinha do Menino Jesus, personagem que ocupa, na atual mitologia portuguesa, um lugar pouco acima de Deus. Resolver-se-ia, é certo, no estilo inesperado do roulement que não rola, o problema do desemprego — para aqueles atuais desempregados bem entendido, que têm por Grão-Mestre Adjunto o sr. Conselheiro João de Azevedo Coutinho.


Seriam essas as consequências internas da aprovação do projeto: dois zeros — um para o efeito antimaçónico da lei, outro para a barriga de muita gente. Seriam essas as consequências internas. Vou tratar agora das consequências que adviriam da aprovação do projeto para a vida e o crédito de Portugal no estrangeiro. Esse aspeto da questão, esse resultado, não só possível mas até certo, creio bem que não ocorreu ao sr. José Cabral. Presto homenagem — e a sério — ao seu patriotismo, embora lamente que seja um patriotismo tam analfabeto.


*


Existem hoje em atividade, em todo o mundo, cerca de seis milhões de maçons, dos quais cerca de quatro milhões nos Estados Unidos e cerca de um milhão sob as diversas Obediências independentes britânicas. Assim, cinco-sextos dos maçons hoje em atividade são maçons de fala inglesa. O milhão restante, ou conta parecida, acha-se repartido pelas várias Grandes Obediências dos outros países do mundo, das quais a mais importante e influente é talvez o Grande Oriente da França.


As Obediências maçónicas são potências autónomas e independentes, pois não há governo central da Maçonaria, que é por isso menos «internacional» que a Igreja Romana. Há Obediências Maçónicas que poucas relações têm entre si; há até Obediências que estão de relações suspensas ou cortadas. Dou dois exemplos. A Grande Loja de Inglaterra cortou em 1877, por um motivo técnico, as relações, que ainda não reatou, com o Grande Oriente da França. A mesma Grande Loja cortou, em 1933, as relações com a Grande Loja das Filipinas, em virtude de divergências — cuja natureza não sei mas presumo — quanto à maneira de desenvolver a Maçonaria na China.


Assim a Maçonaria necessariamente toma aspetos diferentes — políticos, sociais e até rituais — de país para país, e até, a dentro do mesmo país, de Obediência para Obediência, se houver mais que uma. Dou um exemplo. Há em França três Obediências independentes — o Grande Oriente de França, a Grande Loja de França (prolongada capitularmente pelo Supremo Conselho do Grau 33) e a Grande Loja Regular, Nacional e Independente para França e suas colónias. O Grande Oriente é acentuadamente radical e antirreligioso; a Grande Loja limita-se a ser liberal e anticlerical; a Grande Loja Nacional não tem política nenhuma. Dou outro exemplo. O Grande Oriente de França tem uma grande influência política, mas, exceto através dessa, pouca influência social. A Grande Loja de Inglaterra não se preocupa com política mas a sua influência social é enorme.

*

Conquanto, porém, a Maçonaria esteja assim materialmente dividida, pode considerar-se como unida espiritualmente. O espírito dos rituais, e sobretudo o dos Graus Simbólicos (nos quais, e sobretudo no Grau de Mestre, está já, para quem saiba ver ou sentir, a Maçonaria inteira), é o mesmo em toda a parte, por muitas que sejam as divergências verbais e rituais entre graus idênticos, trabalhados por Obediências diferentes. Em palavras mais perspícuas, mas necessariamente menos claras: quem tiver as chaves herméticas em qualquer forma de um ritual encontrará, sob mais ou menos véus, as mesmas fechaduras.


Resulta desta comunidade de espírito profundo, deste íntimo e secreto laço fraternal, que ninguém quebrou nem pode quebrar, que uma Obediência, ainda que tenha poucas ou nenhumas relações com outra não vê todavia com indiferença o ser esta atacada por profanos. Os maçons da Grande Loja de Inglaterra não têm, como disse, relações com os do Grande Oriente de França. Quando, porém, recentemente surgiu em França, a propósito dos casos Stavisky e Prince, uma campanha antimaçónica, de origem aliás ultrassuspeita, a vaga simpatia, que potencialmente se estava formando em Inglaterra pelos conservadores que atacavam o governo francês, desapareceu imediatamente.


O Times, conservador mas acentuadamente maçónico, relatou as manifestações contra o governo francês com uma antipatia que roçou pela deturpação de factos. E há muitos casos semelhantes, como o de certo escritor maçónico inglês, que em seus livros constantemente ataca o Grande Oriente de França, muda completamente de atitude ao responder a uma escritora inglesa antimaçónica, [*]que afinal dissera pouco mais ou menos o que ele havia sempre dito.


Nisto tudo, que serviu de exemplos, trata-se de coisas de pouca monta, simples campanhas de jornal, e por certo de atitudes espontâneas e individuais da parte dos maçons que as tomaram. Quando porém se trate de factos maçonicamente graves, como seja a tentativa, por um governo, de suprimir ou perseguir uma Obediência maçónica, já a ação dos maçons não é tão individual e isolada, nem se resume a uma maior ou menor antipatia jornalística. Provam-no diversas complicações, de origem aparentemente desconhecida, que encontrou em países estrangeiros o governo de Primo de Rivera, e que encontraram, e ainda encontram, os governos da Itália e da Alemanha. Esses, porém, são países grandes e fortes, com recursos, de vária ordem, que em certo modo podem contrabalançar aquelas oposições. Vem mais a propósito citar o caso de um país que não é grande nem influente na política europeia em geral. Refiro-me à Hungria e ao que se passou com o célebre empréstimo americano.


Aqui há anos, pouco depois da guerra, o governo húngaro decretou a supressão da Maçonaria no seu território. Pouco depois negociava um empréstimo nos Estados Unidos. Estava o empréstimo praticamente feito quando veio da América a indicação final de que ele não seria concedido se não se restabelecessem «certas instituições legítimas». O governo húngaro percebeu e viu-se obrigado a entrar em transações com o Grão-Mestre; disse-lhe que autorizava a reabertura das Lojas, com a condição (que parece do sr. José Cabral) de que nelas pudessem assistir profanos. É escusado dizer que o Grão-Mestre recusou. O governo manteve portanto a «suspensão» das Lojas... e o empréstimo não se fez. Ora isto sucedeu com a Maçonaria americana, que não faz propriamente política nem mantém relações muito intensas com as Obediências europeias à exceção das britânicas. Tratava-se, porém, de uma grande injúria à Maçonaria, e o resultado foi o que se vê.


Não venha o sr. José Cabral dizer-me que não precisamos de empréstimo do estrangeiro. Nem só de empréstimos vive o país. Precisa, por exemplo, de colónias, sobretudo das que ainda tem. E precisa de muitas outras coisas, incluindo o não incorrer na hostilidade ativa dos cinco e tal milhões de maçons que, por apolíticos, ainda nos não têm hostilizado.


Creio que disse o suficiente para que o sr. José Cabral e os outros srs. deputados compreendam perfeitamente qual pode e deve ser o alcance da aprovação deste projeto na vida e no crédito de Portugal. Antes de acabar, porém, quero dar-lhes uma pequena amostra da espécie de gente em cuja antipatia ativa incorreríamos.


Tomarei para exemplo a Grande Loja Unida de Inglaterra, não só pela importância que para nós têm as nossas relações com aquele país, mas também porque qualquer ação dessa Grande Loja — a Loja-Mãe do Universo, com cerca de 450.000 maçons em atividade — arrasta consigo todos os maçons de fala inglesa e todas as Obediências dos países protestantes. Do resto da Maçonaria não é preciso falar.


São maçons, sob a obediência da Grande Loja de Inglaterra, três filhos do Rei — o príncipe de Gales, Grão-Mestre Provincial de Surrey, o duque de York, Grão-Mestre Provincial de Middlesex, e o duque de Kent, antigo Primeiro Grande Vigilante. É maçom o genro do rei, conde de Harewood, Grão-Mestre Provincial de West Yorkshire. São maçons o tio do rei, duque de Connaught, Grão-Mestre da Maçonaria inglesa, e seu filho, o príncipe Artur de Connaught, Grão-Mestre Provincial de Berkshire. São maçons, em sua maioria, os fidalgos ingleses, sobretudo os de antiga linhagem. São maçons; em grande número, os prelados e sacerdotes da Igreja de Inglaterra, o clero mais profundamente culto de todo o mundo, a Igreja protestante que mais perto está, em dogma e ritual, da Igreja de Roma. Não prossigo porque já basta... Lembro todavia que os três grandes jornais conservadores ingleses — o Times, o Sunday Times e o Daily Telegraph — são ao mesmo tempo maçónicos...


Acabei. Convém, porém, não acabar ainda. Provei neste artigo que o projeto de lei do sr. José Cabral, além do produto da mais completa ignorância do assunto, seria, se fosse aprovado: primeiro, inútil e improfícuo; segundo, injusto e cruel; terceiro, um malefício para o país na sua vida internacional. Não considerei, porque não tinha que considerar, se a Maçonaria merece o mau conceito em que evidentemente a tem o sr. José Cabral e outros que nada sabem da matéria. Esse ponto estava fora da linha do meu argumento. Como, porém, a maioria da gente não sabe raciocinar, pode alguém supor que me esquivei a esse ponto. Vou por isso tratar dele embora protestando contra mim mesmo. Quem sofre com isso é o leitor.


A Maçonaria compõe-se de três elementos: o elemento iniciático, pelo qual é secreta; o elemento fraternal; e o elemento a que chamarei humano — isto é, o que resulta de ela ser composta por diversas espécies de homens, de diferentes graus de inteligência e cultura, e o que resulta de ela existir em muitos países, sujeita portanto a diversas circunstâncias de meio e de momento histórico, perante as quais, de país para país e de época para época, reage, quanto a atitude social, diferentemente.


Nos primeiros dois elementos, onde reside essencialmente o espírito maçónico, a Ordem é a mesma sempre e em todo o mundo. No terceiro, a Maçonaria — como aliás qualquer instituição humana, secreta ou não — apresenta diferentes aspetos, conforme a mentalidade de maçons individuais, e conforme circunstâncias de meio e momento histórico, de que ela não tem culpa.


Neste terceiro ponto de vista, toda a Maçonaria gira, porém, em torno de uma só ideia — a tolerância; isto é, o não impor a alguém dogma nenhum, deixando-o pensar como entender. Por isso a Maçonaria não tem uma doutrina. Tudo quanto se chama «doutrina maçónica» são opiniões individuais de maçons, quer sobre a Ordem em si mesma, quer sobre as suas relações com o mundo profano. São divertidíssimas: vão desde o panteísmo naturalista de Oswald Wirth até ao misticismo cristão de Arthur Edward Waite, ambos eles tentando converter em doutrina o espírito da Ordem. As suas afirmações, porém, são simplesmente suas; a Maçonaria nada tem com elas. Ora o primeiro erro dos antimaçons consiste em tentar definir o espírito maçónico em geral pelas afirmações de maçons particulares, escolhidas ordinariamente com grande má fé.


O segundo erro dos antimaçons consiste em não querer ver que a Maçonaria, unida espiritualmente, está materialmente dividida, como já expliquei. A sua ação social varia de país para país, de momento histórico para momento histórico, em função das circunstâncias do meio e da época, que afetam a Maçonaria como afetam toda a gente. A sua ação social varia, dentro do mesmo país, de Obediência para Obediência, onde houver mais que uma, em virtude de divergências doutrinárias — as que provocaram a formação dessas Obediências distintas, pois, a haver entre elas acordo em tudo, estariam unidas. Segue de aqui que nenhum ato político ocasional de nenhuma Obediência pode ser levado à conta da Maçonaria em geral, ou até dessa Obediência em particular, pois pode provir, como em geral provém, de circunstâncias políticas de momento, que a Maçonaria não criou.


Resulta de tudo isto que todas as campanhas antimaçónicas — baseadas nesta dupla confusão do particular com o geral e do ocasional com o permanente — estão absolutamente erradas, e que nada até hoje se provou em desabono da Maçonaria. Por esse critério — o de avaliar uma instituição pelos seus atos ocasionais porventura infelizes, ou um homem por seus lapsos ou erros ocasionais — que haveria neste mundo senão abominação? Quer o sr. José Cabral que se avaliem os papas por Rodrigo Borgia, assassino e incestuoso? Quer que se considere a Igreja de Roma perfeitamente definida, em seu íntimo espírito pelas torturas dos Inquisidores (provenientes de um uso profano do tempo), ou pelos massacres dos albigenses e dos piemonteses? E contudo com muita mais razão se o poderia fazer, pois essas crueldades foram feitas com ordem ou com consentimento dos papas, obrigando assim, espiritualmente, a Igreja inteira.


Sejamos, ao menos, justos. Se debitamos à Maçonaria em geral todos aqueles casos particulares, ponhamos-lhe a crédito, em contrapartida, os benefícios que dela temos recebido em iguais condições. Beijem-lhe os jesuítas as mãos, por lhes ter sido dado acolhimento e liberdade na Prússia, no século dezoito — quando, expulsos de toda a parte, os repudiava o próprio papa — pelo maçom Frederico II. Agradeçamos-lhe a vitória de Waterloo, pois que Wellington e Blücher eram ambos maçons. Sejamos-lhe gratos por ter sido ela quem criou a base onde veio a assentar a futura vitória dos Aliados — a Entente Cordiale, obra do maçom Eduardo VII. Nem esqueçamos, finalmente, que devemos à Maçonaria a maior obra da literatura moderna — o Fausto, do maçom Goethe.


Acabei de vez. Deixe o sr. José Cabral a Maçonaria aos maçons e aos que, embora o não sejam, viram, ainda que noutro Templo, a mesma Luz. Deixe a antimaçonaria àqueles antimaçons que são os legítimos descendentes intelectuais do célebre pregador que descobriu que Herodes e Pilatos eram Vigilantes de uma Loja de Jerusalém.


Deixe isso tudo, e no próximo dia 13, se quiser, vamos juntos a Fátima. E calha bem porque será 13 de fevereiro — o aniversário daquela lei de João Franco que estabelecia a pena de morte para os crimes políticos.

FERNANDO PESSOA

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