«O mais espetacular e inventivo castigo criado pela Inquisição foi, de longe, o auto de fé, que, em Lisboa, o povo considerava uma autêntica festa religiosa – o que, em certo sentido, era verdade. A cidade engalanava-se com flores e estandartes. Soldados e padres alinhavam-se pelas ruas e as mulheres usavam as suas mais finas roupas e joias e punham-se à janela apreciando o desenrolar da cena. Depois da missa da manhã, os condenados, segurando velas e envergando longos hábitos e mitras, eram levados pelas ruas da cidade até ao Rossio ou ao Terreiro do Paço. Aí, de pé ou de joelhos, permaneciam ante o rei e outros dignitários, enquanto as suas sentenças eram lidas em voz alta pelo bispo, que presidia à cerimónia. Se os crimes fossem graves, eram entregues ao “braço secular” (porque a Igreja estava moralmente proibida de realizar execuções) e eram então enforcados, como o fora Malagrida [Gabriel Malagrida (1689 – 1761), padre jesuíta], ou queimados vivos em estacas verticais.
Enquanto os condenados se contorciam, agonizantes, no meio das chamas, eram frequentemente escarnecidos pelos seus carrascos e pela multidão e açoitados com grandes bastões. Se os ventos dominantes lograssem evitar-lhes a morte por inalação de fumo, a sua sorte seria ainda mais tremenda. Quando tudo estava terminado, o inquisidor-geral, como era prática, recebia vários convivas em sua casa para uma refeição tardia. Embora as execuções públicas se tenham mantido como um acontecimento comum por toda a Europa até ao século XIX, inclusive, os autos de fé eram mais raros do que se acreditava (entre 1682 e 1691), por exemplo, apenas dezoito pessoas foram executadas desta forma em todo o país). Não obstante, nenhum outro aspeto da civilização portuguesa foi tão inexoravelmente condenado – como esta reminiscência das Guerras de Religião.»
Mark Molesky, O Abismo de Fogo – O Grande Terramoto de Lisboa
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