Portugal e a Maçonaria em tempos de pandemia, pelo Professor Doutor António Ventura*
Este tempo de excepção é para a Maçonaria um tempo extraordinário, sem paralelo, pois, para existir, reclama a essencialidade insubstituível da presença física e da partilha presencial e simultânea do mesmo espaço e do mesmo tempo.
Constitui uma ideia pacificamente aceite que temos vivido tempos de excepção. Tempos de excepção que nos têm privado de comportamentos de proximidade, de comportamentos sociais que são essenciais ao Ser Humano. Numa palavra, temos sido privados de parte da nossa humanidade.
A ausência de proximidade física, a necessidade que temos sentido em estarmos mais distantes, tem feito com que, frequentemente, olhemos para os outros não como parte de uma mesma humanidade, mas antes como um potencial factor de risco a evitar. Todos nós, ao sairmos das nossas casas, em tempos de pandemia, já sentimos essa necessidade de nos afastarmos, de evitarmos os outros, de traçarmos outra rota, condicionados pelo medo que nos assola enquanto sociedade.
A Humanidade enfrenta, por isso, um enorme desafio: recuperar a confiança; uns nos outros, nas relações sociais, nas relações profissionais, nas relações familiares, nas relações de amizade, mas sobretudo nos afectos; ao mesmo tempo que convivemos com um vírus que corrói diariamente essas relações.
Este tempo de excepção é para a Maçonaria um tempo extraordinário, sem paralelo, pois, para existir, reclama a essencialidade insubstituível da presença física e da partilha presencial e simultânea do mesmo espaço e do mesmo tempo.
Assinalámos muito recentemente os 85 anos da publicação da Lei n.º 1901, de 21 de Maio de 1935, que proibia as “sociedades secretas”.
O projecto inicial, da autoria do deputado José Cabral, foi apresentado em 19 de Janeiro na Assembleia Nacional – a primeira do Estado Novo –, destinado a proibir as associações secretas e punir os que a elas pertencessem, obrigando os funcionários do Estado e dos corpos administrativos, civis e militares, a declarar por sua honra que não pertenciam nem jamais pertenceriam a tais associações, obrigatoriedade que também era exigida aos alunos de qualquer grau de ensino pertencente ou subsidiado pelo Estado, a partir dos 16 anos de idade. Depois do parecer favorável da Câmara Corporativa, em 27 de Março, foi votado e aprovado por unanimidade em 6 de Abril.
Começava uma nova época para a Maçonaria Portuguesa, que teve de combater o triunfo momentâneo das forças do obscurantismo, da intolerância e do fanatismo.
Mas nem mesmo nesse tempo fomos privados da egrégora fraterna que nos eleva, pois, mesmo na clandestinidade, apesar dos riscos daí decorrentes, havia a cumplicidade da partilha presencial do mesmo tempo e do mesmo espaço.
No caminho para a recuperação da confiança, colocam-se à sociedade portuguesa – tanto quanto a outras–exigentes tarefas que importa enfrentar e que devem merecer o trabalho dos democratas em geral e de cada um dos maçons em particular, enquanto cidadãos empenhados na construção do bem comum, numa intervenção na sociedade que, não sendo orgânica, não pode nem deve deixar de ser feita.
Os tempos difíceis que enfrentamos afectam e continuarão a afectar de forma decisiva a nossa vida em comunidade. Aos que, como os maçons, encontram na democracia o caminho para a realização social impõe-se uma vigilância e uma actuação permanentes, face à nova realidade que vivemos
Vejamos seis tarefas que reputamos como essenciais.
A pandemia chamou-nos a atenção, de forma dramática, para a essencialidade da existência de um Serviço Nacional de Saúde, enquanto instrumento fundamental da promoção da dignidade humana e da igualdade entre os cidadãos. Abstraindo-nos das opções políticas concretas tendentes ao alcance desse desiderato, nas quais não nos imiscuímos, consideramos que esta é uma matéria em relação à qual se torna imperativo promover uma cultura de compromisso na sociedade portuguesa.
Os tempos difíceis que enfrentamos afectam e continuarão a afectar de forma decisiva a nossa vida em comunidade e terão sérias consequências nos planos económico, financeiro e social.
Aos que, como os maçons, encontram na democracia o caminho para a realização social impõe-se uma vigilância e uma actuação permanentes, face à nova realidade que vivemos.
Desde logo, combatendo, por todas as formas, os populismos e os extremismos de todos os matizes que, historicamente, tendem a crescer em períodos de excepção como o que vivemos e que também tenderão a crescer na sociedade portuguesa, quer de forma mais organizada, quer de forma mais inorgânica, mas igualmente preocupante.
Por isso, é imperioso continuar, como sempre temos feito, a defesa intransigente dos direitos, liberdades e garantias, que, também historicamente, nas épocas com maior propensão securitária, tendem a ser colocados em causa.
A crise económica e financeira que se desenha e que já afecta muitos dos nossos concidadãos trará, inevitavelmente, sérios problemas sociais, com o aumento dos níveis de desemprego à cabeça. A firme defesa da coesão social, as preocupações com os mais desfavorecidos e com as novas formas de pobreza são questões que nos devem ser particularmente caras, de forma a que, no progresso colectivo, “ninguém fique para trás”.
Os números dos mortos, dos internados, dos infectados, dos desempregados, dizem respeito a pessoas concretas, a dramas pessoais e humanos concretos, que exigem a nossa atenção.
Esta crise multifacetada, económica, financeira e social, afectará a sociedade portuguesa de forma marcante e, para a sua resolução, impõe-se uma prática de intervenção pública e cívica centrada nos problemas, de forma a que os interesses da colectividade prevaleçam sobre os interesses individuais ou de grupo, com base numa promoção de inevitáveis compromissos, de que os maçons não se devem alhear, como homens que devem promover o diálogo no seio da Humanidade.
Por fim, as referidas crises afectarão a sociedade portuguesa num momento em que se tem assistido, ao longo dos últimos anos, a um enfraquecimento geral do peso das instituições, aliado a uma incapacidade crescente de renovação e de envolvimento das novas gerações. Impõe-se, por isso, uma intervenção cidadã e empenhada nas diversas instituições da sociedade portuguesa, fortalecendo-as. Impõe-se ainda uma credibilização dos actores públicos e devolução do sentido de nobreza à gestão da coisa pública. Ao fazê-lo fortaleceremos o país.
Cremos que a materialização deste “caderno de encargos” – valorização do Serviço Nacional de Saúde; combate aos diversos populismos e extremismos; defesa dos direitos, liberdades e garantias; defesa da coesão social; preocupação com o bem comum, assente numa cultura de compromisso; fortalecimento e renovação das instituições – contribuirá para a reconquista da confiança na sociedade portuguesa, objectivo que é de todos os democratas, mas também da Maçonaria. Como afirmava Magalhães Lima, em 1907, após a sua eleição como grão-mestre, “É precisamente para fomentar a confiança entre os homens que existe a maçonaria”.
*| Artigo de Opinião publicado no Jornal Público
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