ALEXANDRE HERCULANO
Alexandre Herculano foi outro dos introdutores do movimento romântico em Portugal.
Ainda muito novo, frequentara os salões literários do Morgado de Assentis e da marquesa de Alorna. Tradutora de românticos ingleses e alemães, foi esta última que o incitou a estudar a língua germânica e o guiou no primeiro conhecimento de Klopstock, Bürger, Schiller e Goethe.
Envolvido em 1831 numa conspiração contra o absolutismo miguelista, que abortaria, Herculano teve de procurar refúgio na Grã-Bretanha, país cujos costumes lhe desagradaram e a que não logrou adaptar-se. Acabaria por se fixar em Rennes, tendo sido talvez na biblioteca dessa cidade francesa que descobriu autores tão importantes para a sua educação ideológica e estética como Thierry, Guizot, Victor Hugo e Lamennais.
Soldado do exército de D. Pedro, foi um dos "7.500 bravos" que desembarcaram no Mindelo. Defendeu as muralhas do Porto das investidas miguelistas e, obtida a vitória liberal em Évora-Monte (1834), deu testemunho da sua fidelidade ao partido cartista, embora alinhando com a sua ala esquerda. Em Setembro de 1836 eclode a revolução neo-vintista inspirada pelos irmãos Passos. Tratava-se de repudiar o sestro conservador da Carta Constitucional de 1826 e de regressar ao diploma constitucional de 1822. Os protestos enérgicos de Alexandre Herculano ressoarão, por esta altura, no poemeto "A Voz do Profeta" . O seu sentimento anti-setembrista prefigurava já, através da forma e conteúdo deste folheto, as constantes do literato romântico, que estava a nascer.
Contém "A Voz do Profeta" um entono bíblico, solene e hierático, que define uma das constantes da produção herculaniana. Esta virá a ser invariavelmente sentenciosa, edificante, interventiva, numa palavra, eivada de sentido normativo.
Herculano teve a plena consciência da sua filiação no movimento romântico europeu que postulava a revalorização dos factores nacionais. Afinal, toda a sua obra se insere nestes parâmetros. Neles cabem, desde logo, os versos de temática histórica que irá juntar na "Harpa do Crente" (1838) e nas "Poesias " (1850), sendo certo que eles tanto acolhem a reflexão rimada sobre episódios de remoto passado, como explicitam os episódios da luta anti-absolutista, na óptica de um soldado em desvalida situação de exílio. É evidente que o maior dos tributos prestados por Alexandre Herculano à directriz que recomendava a enfatização das matrizes nacionais reside na imponência da sua obra histórica.
Não estamos a reportar-nos apenas à "História de Portugal" (1846-1853), sem dúvida devedora dos estudos anteriores de João Pedro Ribeiro, Santa Rosa de Viterbo, D. António Caetano de Sousa, Fr. Francisco de S. Luís ou António Caetano do Amaral, mas inegavelmente instauradora de uma metodologia de rigor científico inexistente, na prática, na tradição historiográfica anterior. Temos também em mente as "Cartas sobre a História de Portugal " (1842) publicadas na "Revista Universal Lisbonense" decalcando os moldes e os objectivos das "Lettres sur l'Histoire de France" , de Thierry ; os "Apontamentos para a História dos Bens da Coroa e Forais" (1843-1844), surgidos no "Panorama" ; a desforra anti-ultramontana contida na obra "Da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal" (1854-1859) ; a compilação documental dos "Portugaliae Monumenta Historica" , cujo inventário se iniciou em 1853 e cujo termo de publicação ocorreu em 1873.
Herculano ensaia na poesia e na prosa ficcional um conjunto de processos e motes marcadamente românticos. Confere protagonismo à sua voz, alargando-se em juízos e meditações de pendor ético, filosófico ou simplesmente fáctico. Carrega as tintas do efeito cenográfico, recorrendo frequentemente à desolação de uma Natureza torturada, revolta, em convulsões de apocalipse ; amplia a tensão de paradoxos, contrapondo o efémero da vida humana à eternidade do Divino em que crê, ou aproximando, quase por absurdo, a fragilidade do ser vivo ao espectáculo insondável das suas raízes naturais. Situa na Idade Média o entrecho dos seus contos, novelas e romances históricos, preferência compreensível num autor que repele os séculos XV, XVI e XVII, por ver neles a realização do centralismo político autoritário e do cesarismo régio.
As suas figuras movem-se por entre ruinas e portas secretas, subterrâneos e monumentos escalavrados, lápides sepulcrais e pios agoirentos de mochos, estando sujeitas a diversas sortes de aparições fantasmagóricas e sobrenaturais. Por outro lado, a linguagem bíblica,. grandiloquente como um salmo, imitando Klopstock, faz delas o suporte de paixões absorventes, que constituem o eixo de toda a acção. Absorvente e calculista será o desejo de vingança do truão D. Bibas sobre o Conde de Trava ( "O Bobo" , 1843) ; absorvente e programado será o objectivo de desforço de Dona Leonor Teles, essa "Lucrécia Bórgia com rosto de anjo e alma de demónio", sobre os populares que haviam contestado o seu casamento com D. Fernando ("Arras por Foro de Espanha" , in Lendas e Narrativas , 1851) ; absorvente e amaldiçoado é o projecto de punição de Vasco da Silva sobre Lopo Mendes ( "O Monge de Cister" , 1848). O tema da vingança é, com efeito, omnipresente na obra ficcional de Herculano. Este esquematismo rouba naturalidade aos entrechos , embora corresponda à lógica de um paradigmático embate entre danações e santificações, entre protagonismos demoníacos ou angélicos.
A conflitualidade das situações resulta recorrentemente de tumultos íntimos, de contradições de alma que desvelam a impossibilidade de sintetizar os impulsos das afeições com os imperativos axiológicos. É o caso de "Eurico" (1844), cuja condição de presbítero dramatiza a sobrevivência pecaminosa do amor por Hermengarda ; é ainda o caso de Vasco, no "Monge de Cister" , que mesmo devotado à vida monástica, não consegue fazer triunfar os preceitos evangélicos sobre os mais pérfidos escaninhos do rancor.
Leitor atento de Lamennais, Alexandre Herculano protagonizou no seu tempo a crítica mais acerba ao ultramontanismo eclesiástico. A sua "História de Portugal" , varrendo o mito da aparição de Cristo a D. Afonso Henriques na batalha de Ourique, que anteriormente Luís António Verney também já contestara, constituiu-o em alvo de ataques descabelados, muitos deles provenientes de sacerdotes católicos. Assim se praticava uma feia ingratidão para com aquele que, embora conhecedor das responsabilidades pró-absolutistas do clero monástico no decurso da guerra civil, advogara , após a vitória liberal, a superioridade da clemência e protestara contra a situação precária a que a nova legislação condenava o clero regular.
Herculano propendia para um catolicismo compatível com a laicização da sociedade e com os visos de uma Igreja mais nacional do que romana. Criticava com energia todas as formas de centralização papal, particularmente aquelas que tinham vindo a desenvolver-se a partir do Concílio de Trento. Respondeu às acusações que os púlpitos lhe moviam com o opúsculo "Eu e o clero" (Junho de 1850), sob a forma de carta dirigida ao Patriarca de Lisboa, a que se seguiram o folheto "Considerações pacíficas sobre o opúsculo ' Eu e o Clero' '(Julho de 1850) e as duas cartas que integram as "Solemnia Verba" (Outubro e Novembro de 1850). Brandindo os argumentos da sua historiografia crítica, em tudo adversa à intromissão de fábulas ou maravilhas puramente imaginárias, Herculano provará que a tradição de uma pretensa monarquia divina de Afonso Henriques, divulgada a partir dos fins do século XIV e corroborada nos anos terminais do século XV por Vasco Fernandes de Lucena e Olivier de la Marche, se fundava num documento apócrifo. Esta ilusão seria recolhida por Duarte Galvão, autor da "Crónica de D. Afonso Henriques" , obra totalmente desprovida de senso historiográfico, e pela historiografia dos monges de Alcobaça, por igual carecida de rigor metodológico.
Anos volvidos, Alexandre Herculano será novamente flagelado pelo catolicismo ultramontano, devido ao facto de terem sido acolhidas, nas disposições do primeiro Código Civil português, as suas opiniões favoráveis à inclusão do casamento civil ao lado do casamento religioso. As peças da sua autoria, escritas no decurso desta nova pendência com o catolicismo mais ortodoxo , serão reunidas nos "Estudos sobre o casamento civil" (1865). Tal obra sofrerá o anátema da Cúria romana, através da sua inclusão no "Index".
@A.C.H.
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