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Abuso Sexual de Crianças

O mote para esta minha reflexão, assim como o desejo de a partilhar convosco, surgiu com a recente polémica em torno do acórdão do Tribunal da Relação de Évora¹ , que condenou um professor pelo crime de abuso sexual de crianças, mas mudando o enquadramento dos factos, ao considerar não terem sido praticados “atos sexuais de relevo”, mas “contactos de natureza sexual” (o que implica uma pena mais leve).

Não irei abordar (nem o poderia fazer neste contexto) todas as questões complexas que o acórdão convoca, mas centrar-me apenas no problema da distinção entre “atos sexuais de relevo” e “contactos de natureza sexual”.


O que terá levado o tribunal de primeira instância a enquadrar o comportamento do professor nos “atos sexuais de relevo” e o TRE nos “contactos de natureza sexual”? A “introdução de uma das suas mãos (do professor) por dentro da roupa das menores e, em contacto com a pele destas, o toque, a carícia, a massagem no pescoço, peito/tronco, mamilos e barriga” (sumário do acórdão) deve ser qualificada como “ato sexual de relevo” ou “contacto de natureza sexual”?


Na verdade, e tal como o próprio acórdão refere, “a lei penal não fornece uma densificação do conceito de ato sexual de relevo, nem casuística exemplificativa. Esta situação confere margem de apreciação a quem julga, em função das realidades sociais,


1- Proc. Nº 95/17.8JASTB.E2 de 24/5/2022. 2- Cf., por todos, DIAS, Jorge de Figueiredo, «Comentário ao art. 163º do CP», in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., 2012, p. 720, § 12; ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 4ª ed., 2021, p. 702, n. 8 e p. 735, n. 11, com referência à jurisprudência; e CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da, Os crimes contra

6as Pessoas – Relatório sobre o programa, os conteúdos e os métodos de ensino da disciplina, Universidade Católica Editora, Porto, 2017, p. 133, 3.4. 3- DIAS, Jorge de Figueiredo, «Nótula antes do art. 163º do CP», in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., 2012, p. 711, § 6.


das conceções dominantes e da própria evolução dos costumes” (sumário do acórdão), mas também é verdade que doutrina e jurisprudência têm vindo a tentar densificar estes conceitos, embora não haja uma fronteira evidente e que gere perfeito consenso, sobrando sempre zonas cinzentas .


Será conveniente ter em conta que o crime de abuso sexual de crianças (art. 171º) engloba vários tipos de atos sexuais de diferente gravidade e a que correspondem molduras penais diferentes, embora todos eles coloquem entraves ao “livre desenvolvimento da personalidade do menor, em particular na esfera sexual” : os atos mais graves são os de penetração (cópula e atos equiparados), seguem-se os “atos sexuais de relevo” e, por fim, os contactos de natureza sexual. Ora, se relativamente aos primeiros a lei é clara, a fronteira entre os segundos e terceiros é mais difícil de traçar.


No entanto, parte da doutrina (onde me incluo ) e jurisprudência considera que se deve ter em conta, nesta distinção, a contraposição entre contactos fugazes/demorados, em zonas menos íntimas/ mais, íntimas, por cima/por baixo da roupa.


Estes critérios parecem fazer sentido até porque, no crime de importunação sexual de maior de 14 anos (art. 170º), o caso paradigmático dos “contactos de natureza sexual” é o “apalpão de rua” (ou seja, contacto fugaz e por cima da roupa). Assim, estando em causa crianças, também esta distinção entre toques por cima ou por baixo da roupa me parece de relevar (distinção em que se baseara a decisão de 1ª instância).

Nesta perspetiva, os toques por baixo da roupa, o “contacto com a pele” das crianças, “o toque, as carícias”, “no peito/tronco, mamilos e barriga”, seriam enquadráveis nos “atos sexuais de relevo”.


Mas o que mais surpreende são os fundamentos invocados para este enquadramento legal, ou seja, para não conferir a estes atos o qualificativo “de relevo”: só terem sido praticados uma vez com cada vítima; terem sido praticados em público e “porque, como primeira abordagem do género, é suscetível de ter deixado dúvida, em meninas tão jovens, quanto ao seu propósito” (sumário do acórdão – aspeto este mais desenvolvido no acórdão). Penso que a qualificação de um ato como sendo ou não de relevo não deve depender da frequência da sua prática – esta frequência terá importância, evidentemente, para se contabilizar o número de crimes, não para o enquadramento de cada comportamento, uma vez que o crime em causa não exige reiteração.

Por outro lado, a prática do ato em público, ou em privado, pode eventualmente ter importância para se ponderar a pena concreta, mas não para alterar a sua qualificação, transmutando um ato sexual de relevo num contacto de natureza sexual…. Salientese ainda que, na determinação da pena concreta, e como fator agravante, é muito relevante a relação professor/aluna.


Por fim, mas mais importante, sendo as vítimas crianças, a qualificação do comportamento do agente não pode estar dependente da sua perceção acerca desse comportamento.


As crianças têm de ser protegidas dos abusos dos adultos, exatamente por causa da sua vulnerabilidade e independentemente de terem ou não consciência de que está em causa um abuso.


No caso concreto, estas crianças até se sentiram perturbadas, incomodadas (pelo menos algumas delas), mas mesmo que tal não tivesse ocorrido, ou não tivesse sido provado, não deixavam de merecer igual grau de proteção. Na verdade, se fizéssemos depender o grau de gravidade do comportamento do agente da perceção da vítima, uma pessoa inconsciente ou com grave incapacidade, assim como crianças muito pequenas, não poderiam ser consideradas vítimas de crimes sexuais (ou, pelo menos, dos crimes sexuais mais graves)!


Ora, é evidente que uma pessoa inconsciente, assim como uma criança, ou mesmo um bebé, pode ser vítima destes crimes , ensinando-nos os estudos da área da psicologia que um abuso sexual de uma criança pequena pode ter graves repercussões no desenvolvimento da sua personalidade.


Assim, se o conceito de ato sexual de relevo pode suscitar dúvidas, a fundamentação do tribunal, desvalorizando a gravidade das condutas, atendendo à eventual falta de perceção das vítimas acerca do seu significado, não convence; pelo contrário, as exigências de proteção das crianças imporiam que se salientasse a gravidade de tais comportamentos.


4- Cf. CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da, Os crimes contra as Pessoas – Relatório sobre o programa, os conteúdos e os métodos de ensino da disciplina, Universidade Católica Editora, Porto, 2017, p. 133, 3.4; FIGUEIREDO DIAS distingue entre «um simples beijo» e o «beijo lingual» e entre «um simples toque» e a «carícia insistente», o que me parece fazer todo o sentido, mas dá exemplos de alguns toques mais íntimos, não os enquadrando nos «atos sexuais de relevo», enquanto, em minha opinião, tais toques que já mereceriam o qualificativo «de relevo», a menos que fossem muito fugazes e por cima da roupa (cf. «Comentário ao art. 163º do CP», in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., 2012, p. 720, § 12). Divergindo de FIGUEIREDO DIAS e fazendo referência a vários acórdãos, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 4ª ed., 2021, p. 702, n. 8 e p. 735, n. 11.


75- Claramente neste sentido, Dias, Jorge de Figueiredo, «Comentário ao art. 163º do CP», in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª ed., 2012, p. 723, § 19.4


@ Maria C. F. Cunha


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