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A história da excomunhão

Da porta para fora: A história da excomunhão | Artigo de Opinião


Autor: @ Álvaro Oppermann


Martinho Lutero, Napoleão, Cervantes e até a cantora Sinéad O'Connor fazem parte da longa lista de expulsos da Igreja Católica.


Em 1184, o bispo de Auxerre, na França, Jean de Nevers, excomungou uma cidade inteira. No pátio da igreja da cidade, homens, mulheres e crianças choravam em desespero. Na época, esse tipo de cerimônia reunia multidões.


Apinhados, os fiéis aguardavam a danação do próximo com horror e uma pontinha de sadismo. Naquela ocasião, porém, todos foram impedidos de entrar.


Afinal, eram eles os julgados. Acompanhado de 12 sacerdotes que empunhavam velas acesas, o bispo entrou pela nave principal da igreja e dirigiu-se ao altar.


Lá, recitou a fórmula terrível, extraída do Código Jurídico Canônico: "Nós os excluímos da Santa Madre Igreja no céu e na terra; e nós os declaramos excomungados. Nós os julgamos danados, condenados ao fogo infernal, caso não se arrependam".


Tudo isso porque o bispo Nevers tinha uma rixa com um conde local, Pierre de Courtenay, e a cidade ousou apoiar o nobre.


Mais de 200 anos depois, o padre Jan Hus (1369-1415), da cidade de Praga, foi expulso da Igreja duas vezes. A primeira em 1409, pelo papa Alexandre V (1339-1410). A segunda em 1414, por ordem de João XXII (1249-1334), que revisava as decisões do antecessor. Na ocasião, Hus teve a rara chance de se defender pessoalmente. Não adiantou. Ele sofreu nova excomunhão, foi enviado a um calabouço no atual sudoeste da Alemanha e morreu na fogueira.


O que Jan Hus e os moradores de Auxerre tem em comum é que eles foram vítimas de uma das instituições mais tradicionais da Igreja Católica. Ao longo dos séculos, milhares de pessoas foram punidas com a medida - entre elas, personalidades históricas como Napoleão e Fidel Castro.


A palavra "excomunhão" vem do latim ex communio, ou "fora da comunidade". A princípio, seu teor seria medicinal, e não punitivo: o excomungado é temporariamente exilado a fim de que se arrependa.

Mas não perde a condição de fiel, já que o batismo não pode ser apagado. "A excomunhão é uma sanção penal. Não significa condenação eterna", diz Jerônimo Trigo, professor de teologia da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa. Ou seja: para a Igreja, nem todo excomungado vai para o inferno.


Desde o Concílio de Niceia, em 325, que criou a punição, o afastado não recebe sacramentos. A partir do Concílio de Lyon, em 1215, a medida passou a ser de dois tipos, latae sententiae (automática) ou ferendae sententiae (dada por sentença judicial).


No primeiro caso, o católico que comete um pecado punível com a medida (como o aborto) está expulso imediatamente. No segundo, a sentença é dada por um juiz - que pode ser o papa, um concílio geral, um concílio provincial, um bispo ou um superior de uma ordem religiosa. Padres não tem esse poder.


Portanto, na teoria, a excomunhão seria simplesmente um grande puxão de orelhas. Mas foi assim na prática?


Contra os hereges


O livro bíblico dos Atos dos Apóstolos registra a mais antiga referência a um expulso, Simão, o Mago. "Ele era especialista em magia e arrebanhava multidões. Isso não era bem visto pela aguerrida comunidade de primeiros cristãos", diz o professor de teologia Jon Mark Robertson, autor de Christ as Mediator ("Cristo como mediador").

Depois de 325, o afastamento virou arma em caso de divergências teológicas. Começou então uma saraivada de exclusões mútuas entre os líderes da Igreja.


Quatrocentos anos depois, a prática estava disseminada. O rei franco Pepino, o Breve (714-768) ordenou que todo excomungado fosse expulso do território francês. Na Inglaterra, os punidos não podiam mover ações judiciais (e essa lei durou até 1813.


Na Idade Média, quando o Vaticano vivia às turras com reis rebeldes, o poder de coerção foi fundamental. Nos séculos 11 a 13, foram expulsos vários imperadores do Sacro Império Romano, como Frederico II (1194-1250) e Luís IV (1282-1347). Essa mistura de religião e politicagem tinha um tom farsesco, principalmente em casos evidentes de abuso.


Por exemplo: o escritor espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), autor de Dom Quixote, foi punido em 1587 por um motivo banal: funcionário do Fisco, ele brigou com os padres de Sevilha depois de recolher pão e cevada da Igreja para uso do Exército. O bispo o excomungou durante um processo humilhante. A decisão foi anulada no ano seguinte.


Ainda no século 16, a medida voltou a ser adotada contra religiosos questionadores. Como Martinho Lutero, que em 1520 foi expulso por Leão X (1475-1521). Mas os tempos eram outros, e a autoridade da excomunhão não era mais a mesma. Anos depois, o teólogo francês João Calvino (1509-1564) reagiria à sua simplesmente se mudando para Estrasburgo.


A excomunhão virou arma ideológica. Em 1984, o ex-cardeal Joseph Ratzinger condenou o teólogo Leonardo Boff a dois anos de "silêncio obsequioso" por defender a Teologia da Libertação. O processo que foi conduzido pelo ex-papa Bento XVI, debateu a exclusão do brasileiro.


Diga-me quem julgas...


"Atos de excomunhão, muitas vezes, são fruto de estratégia teológica", afirma o historiador italiano Alberto Melloni. Como essa estratégia varia ao longo do tempo, as alterações em seu uso ajudam a entender a evolução da própria Igreja.


"A excomunhão medieval, de caráter político, tornou-se inócua. Na Inquisição, ela foi marcada pelo fanatismo. Hoje, tem fundo ideológico", diz a historiadora María Tausiet, da Universidade de Saragoça, na Espanha. Ou seja, mais que uma avaliação sobre a pessoa punida, a medida é também um juízo sobre quem excomunga. Nesse sentido, a Igreja também está no banco dos réus.


Os sem-sacramento


Casos ilustres de expulsão da Igreja ao longo dos séculos:


Henrique VIII (1491-1547)


O segundo casamento com Ana Bolena (1500-1536) gerou um conflito com o papa Clemente VII (1478-1523), que expulsou o rei. Em resposta, Henrique criou a Igreja Anglicana.


Napoleão (1769-1821)


Quando se tornou imperador francês, em 1804, retirou a coroa das mãos do papa Pio VII (1742-1823) e coroou a si mesmo. Excomungado em 1809, mandou prender o papa.


Juan Perón (1895-1974)


A punição ao presidente argentino, em 1955, foi uma reação do papa Pio XII (1876-1958) à expulsão de dois bispos católicos, Manuel Tato e Ramón Novoa, críticos do governo.


Joe Di Maggio (1914-1999)


O jogador americano de beisebol foi punido em 1954 por se casar em segundas núpcias com a atriz Marilyn Monroe (1926-1962). A medida foi revogada quando ela morreu, em 1962.


Fidel Castro (1926-2016)


O papa João XXIII (1881-1963) expulsou o ex-ditador cubano em janeiro de 1962. O motivo é evidente: a instalação de um governo comunista de Cuba.


Sinéad O"Connor (1966)


Em 1999, a cantora irlandesa recebeu a pena após ser ordenada sacerdotisa da Igreja Independente Católica. Na ocasião, ela disse que gostaria de ser chamada Madre Bernadete Maria.


Excomunhão judaica


O filósofo Baruch Spinoza foi afastado de sua comunidade.


Não existe um equivalente exato da excomunhão em outras religiões, com uma exceção: o judaísmo. A primeira menção à punição está no Livro do Êxodo, no código da aliança entre Javé e o povo de Israel. Havia uma exclusão de até 30 dias e uma permanente.



Em 1657, o filósofo holandês de origem judaica Baruch Spinoza (1632-1677) conheceu essa medida. Os rabinos de Amsterdã decidiram pela excomunhão quando o jovem pensador divulgou suas ideias a respeito de Deus (que seria apenas um mecanismo imanente da natureza) e da Bíblia (para ele, o livro não deveria ser tomado ao pé da letra).


Em reunião rabínica realizada na noite de 27 de julho, foi lida a sentença: "Anatematizamos, execramos, amaldiçoamos e expulsamos". A única forma de voltar ao convívio social seria pela retratação. O pensador preferiu o isolamento.


“Os que não aprendem com a História, vão cometer sempre os mesmos erros”.


Saiba mais

Excommunication in the Middle Ages, Elisabeth Vodola, 1986.


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