O norte cristão
De condado a reino
Tem-se em geral por provado que o feudalismo nunca existiu.
A base na Península Ibérica, à excepção da Catalunha, onde a influencia feudal francesa se fez sentir com maior intensidade do que noutras partes. A maioria dos historiadores espanhóis e portugueses negam, sem compromissos, a existência de estruturas feudais nos respectivos países, sublinhando o papel desempenhado pelos pequenos proprietários livres e a força decisiva da autoridade central. Foi a «Reconquista», argumentam, que impediu o feudalismo de evoluir até ao fim e o limitou a traços rudimentares.
Esta escola de pensamento correspondeu a uma época em que se olhava o feudalismo sob um ponto de vista jurídico ou político apenas, e se aceitava como único padrão o feudalismo francês.
Estruturas feudais e império carolíngio eram considerados indissolúveis. Umas resultavam do outro.
Hoje em dia,-porém, tende-se a rejeitar tais princípios e a esclarecer que as estruturas feudais derivaram essencialmente das estruturas económicas e sociais romanas e que, onde quer que o império romano existiu ou exerceu influência, o feudalismo resultou como sua consequência lógica.-
Por ora, consideremos apenas alguns dos seus aspectos primários que possam explicar a formação de Portugal.
Não parecem dignas de consideração as comparações entre a França feudal e o estado português, ou entre a França e Leão, ou entre a França e Navarra. A França medieval nos séculos xi a xiii era um grande país, com uma superfície total de 440 000 kM2 , enquanto Portugal passou de 35 000 kM2 (1096) a 89000 (1250), Leão com a Galiza de 780OOkM2 nos fins do século xi a 118 000 (1230), data da sua união final com Castela, e Castela de 104 000 kM2 nos fins do século xi a 138 000 (1230). A Navarra nunca excedeu 15 500 kM2 desde os fins do século xi. Aragão e a Catalunha (ou seja os estados da Coroa de Aragão) chegaram aos 103 000 kM2 , nos meados do século xiii. Separados, as suas áreas reduziam-se para 16 000 kM2 (Aragão nos fins do século xi) e 32 000 kM2 (a Catalunha pela mesma altura). Por conseguinte, seriam mais legítimas comparações de tipo feudal entre qualquer dos reinos ibéricos e as unidades feudais francesas, tais como a Aquitânia (84 000 kM2 ), a Borgonha (44 000), a Bretanha (35 000), a Gasconha (29 000), ou a Normandia (28 000).
Sobre os pequenos reinos que existiam na Península sempre pairou o mito de uma monarquia hispânica unida. Bem cônscios deste ideal, os reis de Leão, como herdeiros teóricos dos soberanos visigodos, adoptaram o título de imperador, que começaram a usar, embora esporadicamente, a partir dos princípios do século x.
Afonso VI (1072-1109) e seu neto Afonso VII (1126-1157) procuraram impor a sua autoridade suserana a todos os soberanos da Espanha. Como «imperadores», podiam e deviam ter reis por vassalos. E é exactamente essa relação entre tais «reis» e o seu «imperador» que precisa de ser analisada primeiro.
No caso de Portugal, ela mostra-se altamente reveladora e constitui explicação suficiente para o seu nascimento como estado autónomo. Pelos finais do século xi, antecedendo franceses das cruzadas do Oriente, chegaram à Península Ibérica, com o objectivo primacial de combater o infiel e ajudar os príncipes cristãos contra a ameaça almorávida, vários contingentes de cavaleiros franceses, acompanhados também de alguma peonagem. A maioria dos cavaleiros e dos seus chefes haviam sido recrutados, como se sabe, entre os filhos-segundos a quem escasseavam terra e glória. Um deles era Raimundo, conde de Amous, quarto filho de Guilherme I o Grande (cognominado Tête-hàrdie, «cabeça ousada») conde da Borgonha (1059- 1087). Como apanágio, Raimundo tinha um condado muito pequeno e de pouca importância na região do Jura. Veio uma primeira vez em 1086 ou 1087, sob o comando do duque de Borgonha Eude I (1079-1102) e depois, uma segunda vez, em 1090, para ficar.
Agora, o objectivo da sua vinda não era militar, ou pelo menos não o era primacialmente. Chamaram-no para noivo de Urraca, a única filha legítima e herdeira do «imperador» Afonso VI, rei de Leão, Castela, Galiza e Portugal, e de Constança, tia do duque Eude. Este casamento fora tratado, ou pelo menos apoiado, por esta última e pelos beneditinos da congregação de Cluny, cujo abade, Hugo, era também tio da rainha Constança. [...], in, Dr. Oliveira Marques