Foi há 46 anos - tinha eu 20 - na Clínica de São Miguel, às mãos do velho Castro Caldas.
Foi a primeira, chamámos-lhe Marta.
Em pequena, dez/doze anos, arranjou um amigo imaginário inseparável chamado Wateliseu, cujo nome pronunciava à francesa, com quem se divertia sozinha e que “levava” para todo o lado .
Em adulta, inventou uma amiga que mencionava constantemente e ninguém conhecia: “A Paula acha, a Paula disse”; tinha vida própria, parecia de carne e osso e todos acreditavam ser sua amiga chegada.
Muitas vezes, não dava a sua opinião, dava a da Paula.
Nunca deixou de nos surpreender nem conseguimos nunca enquadrá-la nem classificá-la nem tipificá-la. Publicou 4 livros.
Não é parecida com ninguém da sua idade, sai fora de todas as regras e rejeita os lugares-comuns da sua geração.
Era ultra-tímida, tenho filmes que comprovam; abrimos a boca de espanto quando, sem alarde, sem espalhafato, sem escola e sem apoios, saltou para os palcos sozinha e começou a fazer humor. Ninguém soube da primeira vez que se estreou, num bar de stand-up que ninguém conhecia. Depois disso, ficava meses e meses em cena, fazendo rir as pessoas, brincando com os ridículos sociais da família e os paradigmas de género.
Sozinha e sem qualquer publicidade, encheu o Coliseu.
No auge do sucesso, retirou-se dos palcos e virou-se para dentro, construindo um caminho muito próprio, feito de silêncio e de desafio ao estabelecido. Não é religiosa, mas tem uma religiosidade invejável.
Mística, sim, mas totalmente funcional: olhos no infinito, pés na terra. Não se adapta a este inferno, tem uma vida única, reservada e incompreensível para quase todos.
Regularmente, faz umas “martatalks” no Villaret, partilhando com o público as suas perplexidades, sem publicidade alguma, que esgotam de semana para semana.
Dá-se com poucas pessoas. Detesta que seja a beleza a defini-la, de modo que publica sempre as piores fotografias, com o cabelo horrível ou uma borbulha na testa: acha o conceito de imagem uma coisa esquisofrenizante.
Faz sucesso com o sexo oposto, mas vive sozinha por opção.
Ao mesmo tempo, nunca se deixou relaxar como mãe, é atentíssima aos seus 3 filhos rapazes, que a adoram.
É psicóloga licenciada, utiliza métodos originais e é muito procurada.
Tal como o irmão, desde que saiu de casa nunca nos pediu um chavo - estão ambos melhor do que eu, felizmente, viraram-se sozinhos e sem padrinhos, nunca se serviram da minha putativa notoriedade para se cumprirem: temos todos nomes diferentes.
É extraordinariamente organizada e trata sozinha do secretariado da existência, sem nunca nos dar sobressaltos.
Come coisas estranhas, que ninguém identifica: sementes, raízes, bagas. Tem carisma e causa admiração pela ferocidade da sua independência.
Gere sozinha a casa com regras muito suas, que não obedecem a nenhum figurino. É doce, inteligente, sensível e meiga, mas segue a sua estrela com uma determinação irredutível. Não cede. Nunca por nunca diz mal de ninguém nem carrega os outros com críticas. É carismática.
Quis uma mãe diferente e conseguiu. Para ela, sou o que não sou para ninguém, foi a única pessoa que me vergou, tiro-lhe o chapéu.
A minha mãe chamava-lhe “bruxa loira”.
É a nossa filha adorada e faz hoje 46 anos – parabéns, meu amor
@ FC de R.F.