UM FRAGMENTO DE AUTOBIOGRAFIA ESPIRITUAL | @A.C.H.
Quero que não me abandone a rebeldia e a desejo de forçar os limites da minha ignorância. Quero que em mim não se apague a capacidade de maravilhamento. Este foi um penhor que recebi com o leite materno.
Teria eu talvez uns doze ou treze anos e a Senhora minha Mãe meteu-me sob os olhos os livros de Aquilino Ribeiro, dizendo : « Vais ler e irás desconhecer milhares de vocábulos. Toma lá este dicionário e este lápis. Sublinha as palavras que te sejam desconhecidas e escreve na beirinha da página o significado. Isto será para ti um jogo. Verás que vais gostar de o jogar».
Estou hoje a reler o livro "Aldeia", do homem das Terras do Demo e lá estão as palavrinhas sublinhadas, com as respectivas correspondências ao lado, escritas a lápis.
Este foi um episódio marcante na minha formação. Fiquei desde aí convencido de que era possível saber o que até então não tinha sabido. Tal atitude transbordou para tudo o que me rodeava. Desse jogo maravilhoso surgiu depois a intenção de meter o ombro a tentar rebentar portas fechadas. Passei a amar as profecias das ciganas, lidas na palma da mão ; e os traços fisionómicos, com o seu significado de fisiognomia ; e, se possível, os alquimistas em busca da pedra filosofal.
Tive a sorte de ser mais tarde ensinado , no âmbito das culturas clássicas - e sobretudo da civilização e cultura grega - pela Doutora Maria Helena da Rocha Pereira, que me fez apaixonar pela Hélade para sempre. Fiquei completamente fascinado pelo Templo de Delfos e pela Pítia . Também pelos augures e pelos sinais . Aprendi que Delfos nada afirmava ou negava. Limitava-se a "dar sinais". Vivi o cerco de Tróia e fui companheiro de Ulisses no país dos Feaces e na gruta de Polifemo.
Corri o risco de explorar os meus próprios limites e por isso estudei Filosofia, reverenciei Religiões e dei-me à Poesia . É que dizer Filosofia , Religião e Poesia é declarar a mesma coisa por palavras homólogas. Acima de tudo, vejo-me um pouco como Prometeu. Também eu gostaria de roubar o Fogo aos deuses. E também em mim passou a ecoar a tremenda e orgulhosa imprecação de Régio : " Meu Deus, quando serei Tu ? ". Só ainda não consegui rematar como ele a tremenda pergunta, ou seja , ainda não coloquei o joelho em terra , para dizer : "Perdão, Deus seja louvado". Não o disse e talvez nunca o profira. Para não melindrar Prometeu ...